Aqui no hospital ninguém pensa
Não tem nenhum que pense
Eles vivem sem pensar
Comem bebem e fumam
No dia seguinte querem saber
De recontinuar o dia que passou
Mas não tem ninguém que pense
E trabalhe pela inteligência
Stela do Patrocínio
Mais um Fórum de
Mobilização Antimanicomial está se aproximando! Será sua 8ª edição, em
associação com a 5ª Mostra de Atenção Psicossocial, um dos seus frutos. Por
falar em frutos, o 8º FMA/5ª MAP é evento que brotou da germinação de um
sonho-semente, regado pelo Numans, cuja pertinência e vigor se revela com mais
força em 2018: uma sociedade sem manicômios – e, cabe frisar,
sem legitimação de “desejos de manicômio”, quiçá integrantes dos modos como
temos nos constituído human@s, especialmente em nossa sociedade capitalista
ocidental. Assumindo a relação com nosso solo, mas sem distanciamento dessa
diretriz maior do Movimento de Luta Antimanicomial em nosso país, reafirmamos,
em nossas vidas, a luta por um sertão sem manicômios.
Sim, o lema do 8º
FMA/5ª MAP brada que na luta vamos – e precisamos – viver: em defesa do cuidado
em liberdade, da autenticação dos diversos modos de levar a vida, da crítica
aos moralismos que atravessam supostas práticas de cuidado, da reconfiguração
das relações da sociedade com o que quer que se chame de “loucura”, da
sustentação da tensão em nossas relações cotidianas com o que diverge dos
padrões construídos. Teremos atenção ao “desejo de controle” e à “vontade de
verdade” que tão frequentemente governam nossos pensamentos e ações, nos mais
diversos cenários da vida.
Não queremos um
“novo normal” ou imposição de uma verdade, mas sim, a valorização da
micropolítica na ampliação das redes de conversação, segur@s de que a vida não
comporta padronização e de que toda forma de vida merece ser valorizada e
defendida. Assumir isso desaloja, pois não há receitas prontas para lidar com a
diversidade das formas com que humanos fazem a vida andar, ou para lidar com
pessoas cujas existências parecem emperradas, demandando cuidado. Cuidado não
rima com confinamento, moralismo, julgamento, constrangimento. Cuidado se
afina com tentativa de compreensão, com abertura, com comunicação, com atenção,
com produção de bons encontros e de alegria.
“Transtorno
mental” é categoria criada, que merece desconfiança e relativização, tendo em
vista tudo o que aprendemos com Foucault. As configurações de sofrimento
psíquico intenso existem e são bem reais, assim como o preconceito produzido a
partir da criação da “doença mental”. Louc@s pensam, trabalham, amam e vivem.
Lugar de “doido” não é no hospício, como tão bem justificado nos versos de
Stela do Patrocínio, pois manicômio é lugar de troca zero. Gente é para
brilhar: pensar, sentir, viver, amar.
E muito cuidado,
você que está aí parado! Você pode ser internado!. Vamos discutir a necessidade
de a cidade escutar outras vozes, diferentes das consideradas doces, porque
adestradas. Paremos! Escutemos! Reflitamos! A loucura cabe na cidade. A
construção de projetos de cuidado no campo da Saúde Mental precisa pôr em
questão qualquer perspectiva de um “patológico em si”, que não se relacione com
condições de vida e padrões culturais. Padrões foram um dia construídos e
legitimados por human@s (que, inclusive, em algumas ocasiões se acharam deuses
ou se assumiram como emissários divinos), aspecto de que nos esquecemos ou
somos levad@ a esquecer.
Tais padrões
precisam ser reconhecidos como circunstanciais e, em geral, correspondendo a
interesses específicos de grupos hegemônicos. Brancos, homens, ricos,
heterossexuais... Condições que sustentaram por anos a incorporação de um
suposto “bem”, de modo que seus representantes se destacaram como opressores
nas relações de poder. Contudo, já avançamos em nossas produções sociais – com
significativa força de movimentos sociais variados –, que puseram a hegemonia
de tais condições em questão: tudo decorre de uma produção histórica, com
marcas de mãos humanas. Não é mais tão fácil que discursos bonitos, mesmo
investidos de pretensas verdades científicas, nos iludam. Estamos
vigilantes!
A luta das
mulheres, na contemporaneidade, é uma das vias que têm nos revelado o desmonte
de certas “verdades” que engolimos por séculos. Sim, mulheres pensam e
trabalham; homens choram – com todo o direito de chorar; pobreza não é condição
natural; louc@s transitam na vida e na cidade etc. etc. etc. Por isso, em 2018
o evento terá uma marca feminina e – por que não assumir – também
feminista. Daremos mais espaços a essas vozes femininas, que sempre estiveram
por aí, mas nem sempre sendo ouvidas com o devido reconhecimento. Por isso a
cor lilás, para marcar essa decisão.
Em tempos
sombrios como os que atravessamos em nosso país, que refletem uma onda
conservadora que grassa pelo mundo afora, estamos atent@s e fortes para
resistir, pois isso também passará. Já sabemos que pode ser diferente! Nenhum
direito a menos. Marielle Franco vive, em nós – human@s que defendem a vida
independentemente de um padrão específico. Por tudo isso e em reverência à
polifonia expressa nesse texto, entoamos a quem topar entrar na nau de nossa
luta cotidiana: saudações antimanicomiais!
Sertão do Submédio São Francisco, 20 de abril de 2018.
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