domingo, 22 de abril de 2018

A luta por um sertão sem manicômios.

Aqui no hospital ninguém pensa
 Não tem nenhum que pense 
Eles vivem sem pensar 
Comem bebem e fumam 
No dia seguinte querem saber
De recontinuar o dia que passou 
Mas não tem ninguém que pense 
E trabalhe pela inteligência 
Stela do Patrocínio

           Mais um Fórum de Mobilização Antimanicomial está se aproximando! Será sua 8ª edição, em associação com a 5ª Mostra de Atenção Psicossocial, um dos seus frutos. Por falar em frutos, o 8º FMA/5ª MAP é evento que brotou da germinação de um sonho-semente, regado pelo Numans, cuja pertinência e vigor se revela com mais força em 2018: uma sociedade sem manicômios – e, cabe frisar, sem legitimação de “desejos de manicômio”, quiçá integrantes dos modos como temos nos constituído human@s, especialmente em nossa sociedade capitalista ocidental. Assumindo a relação com nosso solo, mas sem distanciamento dessa diretriz maior do Movimento de Luta Antimanicomial em nosso país, reafirmamos, em nossas vidas, a luta por um sertão sem manicômios.
Sim, o lema do 8º FMA/5ª MAP brada que na luta vamos – e precisamos – viver: em defesa do cuidado em liberdade, da autenticação dos diversos modos de levar a vida, da crítica aos moralismos que atravessam supostas práticas de cuidado, da reconfiguração das relações da sociedade com o que quer que se chame de “loucura”, da sustentação da tensão em nossas relações cotidianas com o que diverge dos padrões construídos. Teremos atenção ao “desejo de controle” e à “vontade de verdade” que tão frequentemente governam nossos pensamentos e ações, nos mais diversos cenários da vida. 
Não queremos um “novo normal” ou imposição de uma verdade, mas sim, a valorização da micropolítica na ampliação das redes de conversação, segur@s de que a vida não comporta padronização e de que toda forma de vida merece ser valorizada e defendida. Assumir isso desaloja, pois não há receitas prontas para lidar com a diversidade das formas com que humanos fazem a vida andar, ou para lidar com pessoas cujas existências parecem emperradas, demandando cuidado. Cuidado não rima com confinamento, moralismo, julgamento, constrangimento. Cuidado se afina com tentativa de compreensão, com abertura, com comunicação, com atenção, com produção de bons encontros e de alegria. 
“Transtorno mental” é categoria criada, que merece desconfiança e relativização, tendo em vista tudo o que aprendemos com Foucault. As configurações de sofrimento psíquico intenso existem e são bem reais, assim como o preconceito produzido a partir da criação da “doença mental”. Louc@s pensam, trabalham, amam e vivem. Lugar de “doido” não é no hospício, como tão bem justificado nos versos de Stela do Patrocínio, pois manicômio é lugar de troca zero. Gente é para brilhar: pensar, sentir, viver, amar.
E muito cuidado, você que está aí parado! Você pode ser internado!. Vamos discutir a necessidade de a cidade escutar outras vozes, diferentes das consideradas doces, porque adestradas. Paremos! Escutemos! Reflitamos! A loucura cabe na cidade. A construção de projetos de cuidado no campo da Saúde Mental precisa pôr em questão qualquer perspectiva de um “patológico em si”, que não se relacione com condições de vida e padrões culturais. Padrões foram um dia construídos e legitimados por human@s (que, inclusive, em algumas ocasiões se acharam deuses ou se assumiram como emissários divinos), aspecto de que nos esquecemos ou somos levad@ a esquecer. 
Tais padrões precisam ser reconhecidos como circunstanciais e, em geral, correspondendo a interesses específicos de grupos hegemônicos. Brancos, homens, ricos, heterossexuais... Condições que sustentaram por anos a incorporação de um suposto “bem”, de modo que seus representantes se destacaram como opressores nas relações de poder. Contudo, já avançamos em nossas produções sociais – com significativa força de movimentos sociais variados –, que puseram a hegemonia de tais condições em questão: tudo decorre de uma produção histórica, com marcas de mãos humanas. Não é mais tão fácil que discursos bonitos, mesmo investidos de pretensas verdades científicas, nos iludam. Estamos vigilantes! 
A luta das mulheres, na contemporaneidade, é uma das vias que têm nos revelado o desmonte de certas “verdades” que engolimos por séculos. Sim, mulheres pensam e trabalham; homens choram – com todo o direito de chorar; pobreza não é condição natural; louc@s transitam na vida e na cidade etc. etc. etc. Por isso, em 2018 o evento terá uma marca feminina e – por que não assumir – também feminista. Daremos mais espaços a essas vozes femininas, que sempre estiveram por aí, mas nem sempre sendo ouvidas com o devido reconhecimento. Por isso a cor lilás, para marcar essa decisão. 
Em tempos sombrios como os que atravessamos em nosso país, que refletem uma onda conservadora que grassa pelo mundo afora, estamos atent@s e fortes para resistir, pois isso também passará. Já sabemos que pode ser diferente! Nenhum direito a menos. Marielle Franco vive, em nós – human@s que defendem a vida independentemente de um padrão específico. Por tudo isso e em reverência à polifonia expressa nesse texto, entoamos a quem topar entrar na nau de nossa luta cotidiana: saudações antimanicomiais!

Sertão do Submédio São Francisco, 20 de abril de 2018.

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