Pelo Fortalecimento da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS) no Sertão do Submédio São Francisco
A Lei 10.216/2001, também conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica
Brasileira, constitui um marco para a assistência em Saúde Mental/Atenção
Psicossocial no país, instituindo um novo modo de cuidar das pessoas com diagnóstico
de transtorno psíquico, ao dispor sobre a proteção e os direitos das pessoas com
transtorno mental e redirecionar o modelo assistencial.
Aprovada no contexto de um movimento de Reforma Psiquiátrica, assume um
caráter antimanicomial, responsabilizando o Estado pelo desenvolvimento da política
de Saúde Mental, com participação da sociedade e da família.
Após 16 anos de aprovação da Lei, avanços foram alcançados na
implementação de uma Política Nacional de Saúde Mental, que preconiza a expansão
de uma rede de atenção comunitária e de base territorial, com diversos componentes
e pontos de atenção: a Rede de Atenção Psicossocial (RAPS).
Instituída pela portaria 3.088/2011, a RAPS integra o Sistema Único de Saúde
(SUS), sendo fruto da Luta Antimanicomial e afirmando elementos centrais do
movimento reformista, como o cuidado no território, a valorização da
participação d@s usuári@s na definição dos seus projetos terapêuticos e o
questionamento de práticas excludentes, que se fundamentam em
compreensões reducionistas da experiência da loucura e do consumo de substâncias
psicoativas.
Na RAPS, destacam-se os Centros de Atenção Psicossocial (Caps) como
dispositivos estratégicos no cuidado territorial em saúde mental, com foco na
articulação intersetorial. São serviços abertos e comunitários, que visam promover
modos de cuidado pautados na inclusão social, garantindo a liberdade e a busca
de efetivação de direitos das pessoas que atravessam uma experiência de intenso
sofrimento psíquico e/ou problemas decorrentes do uso de substâncias psicoativas,
favorecendo o convívio com a família e a sociedade.
Em nossa região, tomando como referência as conquistas proporcionadas pela
promulgação da Lei 10.2016 e pelas diretrizes da Política Nacional de Saúde Mental,
criou-se um espaço de amplos debates relativos à situação local da Atenção
Psicossocial nos Fóruns de Mobilização Antimanicomial (FMA), com destaque à
realização da I Conferência Interestadual de Saúde Mental articulada ao 2º FMA, em
abril de 2010, no Complexo Multieventos da Univasf, em Juazeiro/BA. Naquele evento,
contando com a participação de representantes de 12 municípios do Sertão do
Submédio São Francico, foram elaboradas propostas e recomendações para a
melhoria da rede de atenção à Saúde Mental em nível regional.
No entanto, passados sete anos de realização da Conferência, assistimos,
ainda, à progressiva precarização da RAPS, especialmente dos Caps. É importante
reconhecer alguns avanços em cidades como Juazeiro e Petrolina, que são referências
para a região, com destaque à implantação de novos dispositivos: a equipe de
Consultório na Rua e a transformação do Caps ad em 24 horas, em Petrolina; e a
garantia de sede própria ao Caps infanto-junvenil e a valorização da área com a
expansão da coordenação para uma Diretoria de Saúde Mental, em Juazeiro.
Contudo, até mesmo essas cidades atravessam uma situação delicada em
relação à manutenção de um funcionamento satisfatório dos serviços da RAPS. Houve
inclusive o fechamento de uma residência terapêutica em Juazeiro, no ano de 2016.
A situação se revela ainda mais dramática em municípios de menor porte, destacando-se,
dentre os problemas:
- Ausência de materiais e infraestrutura adequada para o desenvolvimento das
atividades terapêuticas cotidianas;
- Equipes desfalcadas, com alta rotatividade de profissionais;
- Fragilidade nos vínculos empregatícios dos trabalhadores da rede;
- Falta de investimento no aprimoramento das diversas equipes da RAPS em
temáticas relativas à saúde mental;
- Falta de investimento político na composição e fortalecimento de dispositivos da
Atenção Primária, a exemplo dos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASFs),
que constituem um apoio à rede de saúde mental; e
- Falta de investimento político no fortalecimento das políticas e redes municipais de
saúde mental.
No ano de 2016, residentes de saúde mental da Univasf/MEC, em parceria com
gestores da Central de Regulação Interestadual de Leitos (CRIL) e da VIII
GERES/Petrolina, fizeram um estudo que apontou números alarmantes com relação
às internações em saúde mental realizadas na Clínica Psiquiátrica Nossa Senhora de
Fátima, em Juazeiro, conhecido como “Sanatório”, oriundas dos municípios que
compõem a IV Macro de Pernambuco. Um número significativo de internações ocorreu
sem regulação.
Tais dados revelam um ponto nevrálgico na atenção psicossocial da região: o
componente de Atenção à Urgência e Emergência e o de Atenção Hospitalar.
Urge a retomada das discussões para a implantação de dispositivos efetivos para a
atenção à pessoa em crise em nível de urgência/emergência, a exemplo dos leitos de
atenção integral em saúde mental nos hospitais de referência: Hospital
Universitário/Univasf/EBSERH e Hospital Regional de Juazeiro.
A Clínica Nossa Senhora de Fátima (SNSF) tem indicação de descredenciamento
de seus 75 leitos conveniados ao SUS, considerando o processo de Reforma
Psiquiátrica, as definições da IV Conferência Nacional de Saúde Mental – Intersetorial
(2010) e sua classificação de quinto pior do país definida na última avaliação do
Programa Nacional de Avaliação de Serviços Hospitalares (PNASH), realizada pela
Secretaria Estadual de Saúde da Bahia (SESAB), em 2009.
Desta forma, o Núcleo de Mobilização Antimanicomial do Sertão
(Numans) vem reafirmar seu compromisso no acompanhamento dessas questões,
colocando-se à disposição para colaborar com a defesa e fortalecimento da RAPS no
Submédio São Francisco. Assim, manifesta-se:
- Pela priorização do compromisso com o fortalecimento da RAPS nas agendas
das Gestões Municipais;
- Pela implantação das diretrizes deliberadas na I Conferência Interestadual de
Saúde Mental do Submédio São Francisco (2009);
- Pela estruturação, ampliação e consolidação da RAPS nos cenários municipais
e regional, destacando sua base comunitária e territorial, em apoio aos
usuários/familiares e trabalhadores;
- Pelo fortalecimento e implantação de dispositivos públicos para atenção a
pessoas com problemas decorrentes do uso de álcool e outras drogas,
recusando-se, em nossa região, estratégias desrespeitosas, como a torrente de
internações compulsórias, devendo-se abrir um debate para a valorização de
estratégias de cuidado de caráter laico;
- Pelo fortalecimento das ações de Saúde Mental na Atenção Básica;
- Pelo desenvolvimento de ações intersetoriais, com vistas à promoção de saúde
mental, envolvendo diferentes segmentos, além do campo da saúde, como:
direitos humanos, cultura, esporte e lazer, trabalho e economia solidária,
educação, segurança e outros, especialmente, para o enfrentamento de
problemáticas de alta complexidade sociocultural;
- Pela garantia do exercício dos direitos de cidadania das pessoas com
transtornos psíquicos e problemas decorrentes do uso de substâncias
psicoativas;
- Pela implantação dos leitos de atenção integral em saúde mental nos
dispositivos que compõem as redes de urgência e emergência dos respectivos
municípios;
- Pelo descredenciamento da Clínica Nossa Senhora de Fátima, dado não
condizer com os princípios da Reforma Psiquiátrica;
- Pela valorização das formas de participação e controle social no SUS;
- Pela valorização dos trabalhadores da RAPS, por meio de vínculos
empregatícios dignos;
- Pela expansão de políticas de inclusão social, a exemplo (Estratégias de
Desinstitucionalização, como os Serviços Residenciais Terapêuticos, e
Estratégias de Reabilitação Psicossocial).
O Numans compreende como atitudes fundamentais dos gestores públicos a
sensibilidade, o interesse e o compromisso no que tange às demandas elencadas
anteriormente, dado integrarem seu rol de responsabilidades quando eleitos para
exercerem seus mandatos em defesa dos interesses públicos.
Saudações Antimanicomiais!
Núcleo de Mobilização Antimanicomial do Sertão (Numans)
Sertão do Submédio São Francisco, março de 2017.
* Carta entregue/enviada aos gestores e secretários de saúde dos municípios que compõem a VIII Gerencia Regional de Saúde (VIII GERES), Pernambuco e do Núcleo Regional de Saúde Norte (NRS-Norte), da Bahia.